
A NOÇÃO DO BEM
Por
Magdala Monteiro
“Pertencemos ao
mundo material apenas por um lado. É por isso que experimentamos tão vivamente
os males. Se pertencêssemos a ele por completo, nós nos sentiríamos muito mais
ambientados e muitos sofrimentos nos seriam poupados.”
Léon Denis [1]
É possível
viver desejando o bem, sentir o bem-estar que isso ou aquilo nos causa?
Pensam alguns que, na
vivência do cotidiano, o bem ande escasso e que o mal se apoderou desse mundo.
Muitas vezes ouvimos
por aí: “Esse mundo não tem mais jeito, está tudo perdido! Deus, onde vamos
parar?”.
Refletindo sobre
isso, quero convidar vocês, leitoras e leitores, a uma viagem ao mito da
caverna, que é uma síntese alegórica de toda a doutrina de Platão, filósofo da
Grécia antiga. A história desse mito consta no livro VII de A República,
através um diálogo de Sócrates com Glauco, encontramos um resumo adaptado por
Herculano Pires que diz assim:
Homens
estão enfileirados no fundo de uma caverna, acorrentados de tal maneira, desde
a infância, que não conseguem se virar. Olham para o fundo em cuja parede se
projetam as sombras do que se passa lá fora. O sol projeta a luz e gera o
movimento das sombras. Se um desses escravos se libertar, poderá voltar-se,
andar, mexer, encarar a luz que adentra a caverna e assim ver a realidade. Mas
existe um preço a pagar pela própria liberdade, pois estará inicialmente
deslumbrado pela luz e por ver as coisas com certa dificuldade, que atribuirá
às sombras a realidade. Desviando o olhar do sol achará essas sombras mais
nítidas. E saindo, ao subir o caminho escarpado até a boca da caverna, em
direção ao sol, sofrerá ainda mais. Até que seus olhos se acostumem com a luz,
precisará de tempo, segundo Sócrates, para se adaptar à claridade da região
superior, pois estaria desviando seu olhar dos objetos reais para suas sombras
projetadas no solo ou nos reflexos da água. E quando esse escravo liberto se
habituar a luz e tornar-se capaz de encarar o próprio sol, poderá compreender a
verdadeira natureza das sombras projetadas na parede da caverna. E se voltar lá
e falar para os outros o que viu e o que aprendeu, será considerado um sofredor
de perturbações visuais. Mas o que viu a luz aprenderá a desdenhar as sombras e
acima de tudo compreender que não pode se dar à alma a faculdade de ver, que
ela já possui, mas de corrigir a direção dos seus órgãos visuais. [2]
Nesse mito, Platão
reporta-se à realidade, mas ela se encontra fora da caverna, e as
criaturas têm que subir uma estrada íngreme, sair da caverna, encontrar o sol e
sentirem-se libertas das sombras a que se acostumaram, percebendo o quanto pertencem
ao mundo da luz para, a partir daí, prosseguirem em busca do supremo bem.
Herculano pires, no
livro Os filósofos assevera: “A realidade, pois, é a ideia e a
irrealidade está nas coisas, no mundo sensível. O sensível não tem segurança,
estabilidade, flui continuamente, e essa fluidez é a maior prova da
irrealidade. Os homens que pensam o real no sensível, são escravos da
matéria voltados para as sombras no fundo da caverna”. [3]
Tais reflexões trazem,
para a vida prática, o pensar sobre o que sente o ser para, a seguir,
observando o seu modo de viver, fazer uma escolha: a de permanecer voltado para
a parede, onde estão as sombras sem consistência, ou buscar no íntimo a
lembrança de um mundo das ideias.
Estariam
as ideias além dessas sombras, que são do mundo verdadeiro, de onde viemos? As sombras
estariam refletindo ideias?
Seria essa ideia, na
verdade, a chave para percebermos que o bem pode ser idealizado diariamente e que
o seu alcance está mais perto do que imaginamos?
Para se ter esse bem
no cotidiano, seria essencial algum esforço ou ele está no campo do inalcançável?
Há quem diga que, pelo
exercício do bem no dia a dia, garantimos que ele seja prazeroso, simplesmente pela
sua prática, aumentando assim o nosso desejo de realizá-lo mais vezes e obtermos mais prazer, que tende a aumentar na
medida que focamos no próximo, e não em nosso próprio prazer.
Platão disserta, em A
República, que o bem está no mundo das ideias e que não basta que se
preocupe com o próprio bem, devendo pensar na pólis (cidade para o grego), daí
a política vir dessa relação entre as pessoas da cidade, nada parecida com a
política partidária que temos hoje.
Logo, pensar na
coletividade é o que atrai a felicidade que se deseja, e não se concentrar em si
ou em um e outro, ou nos próprios interesses; é o agir de forma coletiva que torna
feliz todo cidadão.
No mito, a ideia do
supremo bem está representada pelo sol, enquanto a fogueira é o reflexo do que
reside ali no interior da caverna (que é a cópia); encará-lo, contudo, é o
desafio!
Léon Denis registra, em
sua obra O problema do ser e do destino, o seguinte pensamento:
A noção do
bem, gravada no fundo da consciência, é ainda uma prova evidente de nossa
origem espiritual. Se o homem viesse do pó ou se fosse o resultado das forças
mecânicas do mundo, nós não poderíamos conhecer nem o bem, nem o mal, nem
sentir remorso ou dor moral. Dizem-nos: “estas noções vêm dos vossos
antepassados, da educação, das influências sociais!” Mas se são heranças
exclusivas do passado, de onde as recebemos? E por que elas se multiplicam em
nós, se não encontram terreno favorável nem alimento? [...]
O homem é, pois, ao
mesmo tempo, espírito e matéria, alma e corpo. Mas, talvez espírito e matéria
sejam apenas palavras, que exprimem, de modo imperfeito, as duas formas da vida
eterna, que dormem na matéria bruta, despertam na matéria orgânica, se ativa,
desabrocha, e se eleva no espírito. [4]
Cultivar um olhar que
busca além das coisas e das pessoas, com vistas à manutenção do bem em si, para
realizá-lo eficazmente, talvez seja a necessidade do ser no momento presente.
A noção do bem é o
fundamento da realidade, pois está além das aparências. O bem é a ideia do
absoluto. É pela ideia do bem que todas as outras ideias são conhecidas, daí
emanando outras qualidades.
Encerro com o raciocínio
de Sócrates: “No mundo inteligível: a ideia do bem é a última a ser apreendida,
e com dificuldade, mas não se pode
apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe
em todas as coisas.” [5]
Ao compreender
realmente o bem que têm no coração, as criaturas, durante a vida prática, já
não desejam mais o mal, têm horror a ele.
Seja o que for que
aconteça, atuar pelo bem ainda é a melhor dica da vida!