A CRISE DO CATOLICISMO NO SÉCULO XIX 

PARTE 1

 

por Rodrigo Farias

Historiador e professor, apresentador do podcast Horizonte Espírita, membro da Sociedade Espírita Sorella e do Centro de Educação e Orientação Espírita Jésus Gonçalves.

Caros leitores,

Eu sou Rodrigo Farias e, hoje, estamos começando uma nova série aqui no blog da Lachâtre. Esta é uma versão escrita da coluna História do espiritismo em pílulas, originalmente publicada no podcast da Sociedade Espírita Sorella (SES), o SorellaCast.

O nome já diz tudo: História do espiritismo em pílulas visa trazer um pouco de informação sobre o mundo em que o espiritismo surgiu. Para isso, falaremos de vários temas, como:


 ·     a biografia de alguns dos personagens presentes na codificação;

·       o ambiente religioso e político da França em meados do século XIX;

·       a configuração do catolicismo no período;

·    o surgimento do espiritualismo moderno, que depois daria origem ao espiritismo que conhecemos.

Hoje, em nosso texto introdutório, trataremos de um assunto que permeia todo o cenário histórico em que o espiritismo viria a nascer: o estado da Igreja Católica Romana aí entre Napoleão e o Concílio Vaticano I. Esse será o pano de fundo de alguns dos textos futuros.

* * *

Comecemos com a França. A situação da Igreja Católica ali passou por mudanças traumáticas na virada do século XVIII para o XIX. Graças à Revolução Francesa de 1789, a igreja passou de um pilar do Antigo Regime, em que o rei governava por direito divino, para uma subordinação humilhante a um Estado ideologicamente hostil. As perseguições ao clero por parte dos revolucionários, o forte anticlericalismo do liberalismo nascente, o confisco de bens e a nomeação de bispos pelo governo mostravam uma igreja em baixa primeiro na França e, depois, nas partes da Europa que ela viria dominar. Para se ter uma ideia da extensão do problema, basta saber que, em 1809, o próprio Papa Pio VII foi capturado e aprisionado por Napoleão durante 5 anos.

Um dos motivos da prisão do papa nos ajuda a entender a igreja dessa época. Pio VII recusava-se a conceder a Napoleão o direito de nomear bispos sem aprovação papal – o que faria o papa perder o último resquício de controle sobre a igreja da qual supostamente era o governante máximo. O controle sobre os bispos era importante porque, numa época de parca tecnologia de comunicação e transportes lentos, só a igreja tinha a penetração necessária para dar a quem a controlasse uma grande influência sobre a massa popular. Os sacerdotes não eram apenas guias espirituais: em suas mãos estavam as poucas escolas existentes, e seus sermões ajudavam a formar a opinião pública.

Além disso, a igreja era também uma potência política. A área central da Itália era governada por ela, na forma dos Estados Papais – que seriam objeto de disputa com os impérios vizinhos e formariam, depois, um obstáculo ao projeto de unificação da Itália. Mais de uma vez ao longo do século, já depois da queda de Napoleão, o papa pediria à vizinha Áustria para ajudar os exércitos papais – isso mesmo, exércitos papais –, para sufocar levantes dos seus súditos. E estes, por sua vez, indignados com a opressão do governo eclesiástico, não raro se interessavam pela ideologia que melhor criticava o poder temporal da igreja naquele momento: o liberalismo.

O liberalismo foi a fonte filosófica dos grandes princípios usados pela burguesia na Revolução Francesa. Os chamados direitos civis, hoje consagrados nas constituições de todas as democracias modernas dignas desse nome, nascem dessa maneira de entender a política. Alguns desses direitos, chamados na época de liberdades (daí o termo “liberalismo”), eram vistos pelos clérigos conservadores como uma ameaça em potencial. Eram eles, por exemplo, a liberdade de consciência, ou seja, poder crer em qualquer religião que se queira; a liberdade de culto, ou seja, poder praticar, sem represália ou limitação legal, os ritos de sua fé; a liberdade de expressão, que significava exprimir seu pensamento sem, por exemplo, temer acusações de heresia, blasfêmia ou impiedade; e a liberdade de imprensa, pela qual as opiniões inconvenientes podiam se espalhar pelo restante da sociedade; isso sem falar das propostas liberais de Estado laico e educação laica, que tiravam do clero católico grande parte de seu poder temporal. Do ponto de vista da igreja, que se via como a guardiã da moral e do bem-estar espiritual da sociedade, reconhecer tais direitos a impediria de cumprir seu papel. Afinal de contas, nessa época, a ideia de que religião era uma mera questão privada, individual, era uma relativa novidade histórica e, em muitos lugares, ainda controversa. Muita gente ainda via como natural a ideia de que a igreja tinha o dever de salvar o maior número possível de almas por todos os meios necessários, inclusive, se preciso, pela coerção.

No caso francês, a política oficial era o galicanismo, que se consolidou durante o reinado de Luís XIV, na segunda metade do século XVII. Sua tese principal era a de que a igreja de cada país devia estar subordinada ao monarca, e não ao papa. Lembremos que essa é uma época em que se trabalhava com a ideia de que a autoridade do soberano era dada diretamente por Deus. Não por acaso, atribui-se ao mesmo Luís XIV a célebre frase L’État c’est moi (“O Estado sou eu.”). Então, parecia natural que esse mesmo rei escolhido por Deus escolhesse, por sua vez, os bispos da igreja em seu território, e até os destituísse quando julgasse apropriado. E ainda havia outra vantagem: na doutrina galicanista, os reis não deviam nenhuma obediência ao papa nos assuntos temporais, ficando livres de uma interferência que vinha de séculos.

O galicanismo sobreviveu na igreja francesa aos abalos da revolução e do Império Napoleônico. Era uma doutrina muito conveniente para os governantes, e foi mantida mesmo depois da volta da dinastia Bourbon ao poder, a partir de 1814. Isso gerou um movimento católico de reação conhecido como ultramontanismo, que defendia com unhas e dentes que o papa, e não o rei ou os concílios, deveria ser a autoridade máxima da igreja em todos os assuntos. No começo, esse ultramontanismo misturava-se com os chamados reacionários, aqueles que queriam fazer o relógio voltar para trás, para antes da Revolução Francesa – e assim devolver o maior número possível de privilégios do clero e da nobreza. E eles bem que tentaram: nesse período que vai da queda de Napoleão até 1830, a política assume formas bem conservadoras. Havia eleições, mas só podia votar ou se candidatar quem tivesse um certo nível de renda e propriedade. E, para azar dos ultramontanos, a dinastia restaurada, apesar de se dizer católica e devota, não abriu mão do poder que o galicanismo lhe dava. A luta para centralizar o poder religioso em Roma continuava.

Em 1830, no entanto, veio o susto. Uma nova revolução explodiu na França. Barricadas ergueram-se em Paris, multidões saíram às rua, e o rei Carlos X foi deposto em nome de princípios liberais. Mais uma vez, os Bourbons perderam o poder, dessa feita para sempre. Em seu lugar, assumiu Luís Felipe de Orléans, conhecido como o “rei burguês”. Luís Felipe, frequentemente visto com chapéu e guarda-chuva, não ostentava a pompa dos antecessores. Em seu governo, era a burguesia, e não a nobreza e o clero, a principal beneficiária. Mas ele também não abriu mão do sistema galicano. O Estado continuava nomeando e até pagando um salário aos clérigos.

Essa situação, que não era só na França, foi um estímulo para Roma iniciar um processo de reafirmação de sua autoridade que se estendeu pelas décadas seguintes. E não foi só uma questão de política, mas também envolveu milagres, novos dogmas e até guerras. Mas isso fica para a nossa próxima postagem.

Até lá!


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1 Comentários

  1. Informação preciosa para o entendimento do contexto histórico -cultural no qual atuou Kardec. Parabéns, Rodrigo!

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