A
crise do Catolicismo na Europa – parte II
Historiador e professor, apresentador do
podcast Horizonte Espírita, membro da Sociedade Espírita Sorella e do Centro de
Educação e Orientação Espírita Jésus Gonçalves.
Caros
leitores, este é o segundo texto da nossa série História do Espiritismo em
Pílulas, originalmente publicada no SorellaCast. Nele, daremos sequência ao
panorama iniciado no texto anterior, a respeito do estado do catolicismo
europeu na época de Allan Kardec e da formação do espiritismo.
Em
nosso último texto, falamos de alguns dos desafios que a Igreja Católica Romana
enfrentou entre fins do século XVIII e meados do XIX. Hoje, falaremos sobre
como ela reagiu a isso e, no dizer do historiador Ambrogio Caiani, “perdeu
um reino para ganhar o mundo”.
A
expressão já antecipa o fim dessa história. Os Estados papais, que igreja se
esforçou tanto para preservar nas primeiras décadas do século, foram engolidos
durante o processo de unificação da Itália, em 1861. Dividida durante séculos
em vários reinos, ducados e cidades-estado, foi só depois de muita articulação
política e conflitos militares que a Península Italiana se tornou um só país. A
Igreja Católica fez o que pôde para proteger seus territórios disso, inclusive
mobilizando tropas papais e voluntários vindos de todo o mundo –
tudo em vão. E para tornar a derrota ainda mais amarga, o novo Estado italiano
escolheu ter sua capital justamente em Roma, a sede da Santa Sé, até então
governada pelo papa.
Era
o fim de uma era. O governo direto da igreja sobre largos territórios deixava
oficialmente de existir. Isso não queria dizer que ela perdera toda a sua
influência, é claro. Na Irlanda, por exemplo, um clero conservador dominava a
vida cultural do país; na América Latina, o status da igreja e de suas
propriedades ainda era um grande pivô nas disputas e guerras civis entre
liberais e conservadores. Ainda assim, era inegável que o catolicismo tinha
sofrido um baque: o moderno Estado liberal havia lhe imposto uma derrota no
coração de seus domínios.
Mas
essa perda de poder temporal viria a ser contrabalançada por uma revitalização
do poder espiritual. Se não era mais possível ter um reino literal sob
seu comando, o poder eclesiástico sobre milhões de corações e mentes em todo o
mundo ainda era uma realidade. E alguns eventos “sobrenaturais” vieram reforçar
essa influência.
Exemplo
disso é o que aconteceu em 1846, na cidadezinha de La Salette, nos Alpes
franceses. Dois adolescentes, Maximin Giraud e Mélanie Calvat, cuidavam de
algumas vacas quando se depararam com uma misteriosa dama, alta e luminosa, que
chorava copiosamente sentada sobre uma pedra. “Não tenham medo”, elas lhes
disse, dando-lhes algumas boas notícias. Embora o seu filho estivesse zangado
com o mundo, por este ter se afastado de Deus, ainda havia tempo para o
arrependimento e a conversão. Também deu conselhos sobre a plantação de
batatas, que vinha sofrendo com pragas desde anos anteriores. E, por fim,
recomendou que o povo orasse mais, recitando o Pai-Nosso e a Ave Maria, e
confiou alguns segredos aos dois jovenzinhos. Depois disso, a depender da
versão dada por Maximin e Mélanie, a senhora subiu até às nuvens ou desapareceu
por trás da montanha próxima. A história logo chegou ao padre local e mais
tarde aos bispos, que autenticaram a história. Logo La Salette se tornou ponto
de peregrinação de devotos, que creem que a “senhora” era ninguém menos do que
a Virgem Maria.
Em
1858, fenômeno parecido se deu em Lourdes, também na França, e se tornou ainda
mais famoso. Novamente uma jovem, Bernadette Subirous, de 14 anos, deparou-se
com uma mulher misteriosa numa gruta enquanto buscava lenha. Logo ela percebeu
que sua irmã e a amiga que a acompanhavam não conseguiam vê-la. Voltando outras
vezes, Bernadette chegou a fazer um “teste”, jogando água benta na aparição e
rezando o rosário, e se convenceu de que ela não era de origem demoníaca. A
partir do terceiro encontro, de um total de dezoito, a mulher começou a falar
com Bernadette, pedindo-lhe que voltasse outras vezes. A história desses
encontros espalhou-se, e mais uma vez coisas fantásticas começaram a acontecer.
Como em La Salette, uma fonte de água brotou no local e peregrinos começaram a
frequentá-la. Não tardou para que relatos de curas milagrosas começassem a
circular, aumentando ainda mais a visibilidade de Lourdes. Clérigos e até
policiais interrogaram a jovem Bernadette, que passou a visitar a gruta sob o
olhar de uma multidão de curiosos e devotos. As aparições estenderam-se de
fevereiro a julho de 1858 e, ao fim, a França tinha o que viria a ser um dos
mais famosos centros de peregrinação cristã do mundo. A partir daí, todos os
anos, dezenas e dezenas de curas eram atribuídas à fonte miraculosa e à
intercessão da Virgem.
Um
detalhe na história de Lourdes chama atenção. Quando Bernadette perguntou à
senhora quem ela era, a reposta foi: “Sou a Imaculada Conceição”. Esse era o
termo usado para o mais novo dogma católico, proclamado pelo Papa Pio IX em
1854. Segundo ele, Maria de Nazaré não fora uma mortal qualquer: além de
perpetuamente virgem, intocada pelo desejo sexual, ela fora concebida sem a
mancha do pecado original que, na doutrina católica, assola o resto da Humanidade
e é transmitido de geração em geração desde Adão e Eva. Por consequência, Maria
não era apenas mais uma santa, ou a mãe mortal de um ser divino, e sim uma
criatura excepcional desde o primeiro momento de sua existência.
Dessa
forma, a devoção a Maria, que existia há séculos, ganhava uma clareza teológica
que jamais tivera. Se antes um S. Tomás de Aquino, por exemplo, podia rejeitar
a Imaculada Conceição como uma hipótese não convincente, agora, por decreto
papal, quem duvidasse dessa condição singular de Maria seria automaticamente
excomungado. Afinal, dogma não se discute.
Pio
IX, contudo, não parou por aí. O mais importante papa do século XIX deu ainda
outro passo para reafirmar o poder espiritual da Igreja e do seu cargo de papa.
Era preciso, em sua visão, combater os erros que tornavam a sociedade moderna,
com suas ideias liberais vindas do Iluminismo, uma inimiga da única fé
legítima. Primeiro, em 1864, ele publicou o Sílabo dos Erros, nos quais
enumerava dezenas de ideias e práticas que a igreja condenava, em particular
várias das liberdades que mencionamos no último texto: liberdade
religiosa, liberdade de imprensa, separação entre Estado e igreja, e até o
racionalismo, as doutrinas de religião natural e a soberania popular.
Pouco
depois, em 1869, Pio IX daria um passo além e, no Concílio Vaticano I, tornou
oficial o dogma da infalibilidade papal. Isso significava que a igreja
oficializava e investia toda sua autoridade na crença de que o papa, quando
falava a partir da autoridade de seu cargo, não podia errar em matéria
moral ou religiosa. Portanto, seus decretos nessas áreas eram compulsórios para
todo católico. Nada mais de discussões infindáveis de pontos teológicos: Roma
locuta, causa finita. Era o sonho dos
ultramontanos: a Igreja Católica finalmente se unificava sob uma única
autoridade, ainda que agora só no sentido espiritual.
Foi
justamente nesse momento, diante dessa igreja em guerra aberta aos princípios
da modernidade, que uma nova forma de espiritualismo surgiu, abraçada
justamente aos valores que o Sílabo de 1864 rejeitava. Ciência,
racionalidade, progresso, reforma social e, acima de tudo, liberdade eram
as marcas dessa nova forma de vivenciar a espiritualidade. Parte dessa história
você provavelmente já conhece. Mas, nos próximos textos, passaremos a algumas
das figuras que abriram o caminho para ela, nos dois lados do oceano.
Até
a próxima!
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