A FORÇA NO MANEJO DA FRAGILIDADE

 

 

Por Roseana Mendes Marques

 Rosena Marques é juíza aposentada, psicóloga e ex-diretora do Centro Espírita Amor, Caridade e Esperança (Ceace)


Segundo o ensinamento taoísta, a natureza é nossa grande mestra, constituindo, a vida, um fluxo de ciclos, assim como acontece com as estações do ano.

Pitágoras, citado por Herculano Pires na obra Os filósofos, pensava a vida dividida em quatro estações: a primavera, equivalente à puerícia, até os 20 anos; o verão seria a adolescência, dos 20 aos 40; o outono corresponderia à juventude, dos 40 aos 60; enquanto o inverno seria a senectude, dos 60 aos 80 [1].

Assim, nada escapa às leis e ao movimento da natureza. Vejamos as águas de um rio caudaloso e robusto. Sua força pujante não briga com os obstáculos: quando encontra uma pedra pelo caminho, não há confronto, impaciência, revolta, mas aceitação do que é o natural para acontecer no seu trajeto.

Na natureza tudo tem sua razão de existir.

Com essas reflexões, saí da peça do aclamado dramaturgo Othon Bastos, intitulada “nÃo me EntRegO, nÂo!”, no Teatro Vanucci, Rio de Janeiro.

Aos 91 anos de idade e 70 de carreira, Othon, pela primeira vez em sua existência, aventurou-se a montar um monólogo contando suas experiências, seus amores, suas alegrias, suas frustrações e muita dedicação ao ofício de atuar.

Sua história de vida se amalgama com a do nosso país: cinema novo, ditadura militar, repressão, liberdade sexual, pobreza, casamento... A plateia foi ao delírio inúmeras vezes, reverenciando esse homem comprometido e realizado, lembrando dos personagens épicos de “Beto Rockfeller”, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Mulheres de areia” e “Um grito parado no ar” – este último, assisti três vezes!

Houve algo, contudo, em meio a todo aquele contexto, que me tocou profundamente: a memória!

Ao seu lado, no canto do palco, sentada em uma mesa com um texto escrito, estava ela, “A MEMÓRIA”.

A diretora e atriz Juliana Medela participa do espetáculo fazendo descrições, como uma assistente virtual; no entanto, mais do que isso, ampara Othon com deixas de falas em alguns poucos momentos de lapsos, absolutamente justificáveis pela sua idade e pela duração da peça. A atuação de Juliana confere às cenas um sentido de humanidade tão necessário nos dias de hoje, em que se forjam super-humanos na grande mídia.

Othon, ao aceitar as limitações do tempo e entregar ao público a visão de sua fragilidade física, sem qualquer subterfúgio e com a maestria de um ícone das artes, transmite-nos um ensinamento taoísta: ele transforma-se nas águas do rio que desliza sobre os obstáculos, sem revolta, ultrapassando-os com firmeza, humildade e imensa gratidão.

No ocaso da própria existência, o ator aceita-se como é; abraça a própria condição, sem negá-la. Com isso, também nos deixa uma lição de imortalidade. Ao monologar sobre as próprias memórias, apesar dos lapsos, ele acolhe o que foi e o que é, agora, mas também o seu devir, levando com ele a certeza, ainda que de modo inconsciente, de que novos verões se anunciam sempre em nossas trajetórias.

Conviver consigo no “inverno estendido” da existência, com força, alegria, paciência e generosidade, é o que desejamos para todos aqueles que tiverem merecimento e coragem para envelhecer.

  

[1] PIRES, Herculano. Os filósofos. 5. ed. São Paulo: Feesp, 2001.

 

 

Confira aqui os livros da Lachâtre: https://www.lachatre.com.br/

0 Comentários