Hermínio, um homem bom

por Marta Chiarelli de Miranda

Muitos certamente conhecem o vasto currículo de Hermínio Corrêa de Miranda como escritor espírita, autor de mais de quarenta obras sobre o assunto, além de cinco traduções, do francês e inglês para o português. Em vista de se completarem cem anos desde o seu nascimento, recebi de Alexandre Rocha o pedido para que escrevesse algumas páginas sobre o Hermínio, meu pai. Das muitas impressões guardadas com todo carinho na memória, ocorreu-me registrar neste artigo alguns fatos da sua trajetória, desde os tempos de colégio no interior do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, sua projeção na esfera profissional e as primeiras incursões na literatura brasileira, até ele se tornar o escritor tão aclamado no meio espírita.

Palavras nem sempre são precisas, mas, se tivesse que mencionar algumas que sintetizassem a personalidade e o caráter de meu pai, seriam elas: bondade, sensatez e determinação. De nossa longa convivência, alguns fatos marcantes permanecem indeléveis na memória, como se fossem videoclipes. O primeiro diz respeito a um passeio no pequeno quintal da casa de Volta Redonda, na rua 26, número 33, quando eu era bem pequena, e ele me mostrou que as folhas do tomateiro tinham o mesmo cheirinho do fruto. Até os dias de hoje, aquele aroma característico me faz transportar para o momento despretensioso da minha primeira infância e pensar no temperamento tranquilo e discreto de meu pai, no seu interesse pela natureza. Nesse fluxo de recordações, surge o dia em que me ensinou a dar o laço nos cordões do sapato e, mais tarde, a nadar. Era ele que me ajudava com as tarefas de matemática e tinha a habilidade de descomplicar a matéria tão temida por tantos estudantes.

Partimos agora do cenário de Volta Redonda, onde Hermínio nasceu, em 5 de janeiro de 1920, e, diga-se de passagem, eu também, 29 anos mais tarde. Meu pai era o primogênito do casal José Reduzindo e Helena Corrêa de Miranda, que teria mais dez filhos, a saber, oito homens e duas mulheres. Meu avô foi chefe de estação e telegrafista da Estrada de Ferro Central do Brasil. Era um homem que teve poucas oportunidades de estudo, mas, segundo meu pai, expressava-se muito bem, tanto na língua falada quanto na escrita, e tinha uma bela caligrafia. A mãe fora educada em colégio de freiras, em Taubaté, e era católica, tendo criado os filhos de acordo com os preceitos da religião. Meu pai, assim como os demais irmãos, recebeu os sacramentos da Igreja Católica e assistia às missas dominicais com assiduidade. Foi a minha avó Helena quem o alfabetizou e lhe passou as primeiras noções de aritmética, como se dizia. Volta Redonda àquela época não passava de um vilarejo, cuja população talvez não chegasse aos mil e quinhentos habitantes, e onde “não havia prefeito, nem delegado, médico, juiz de direito ou padre”, conforme palavras dele, e muito menos uma boa escola primária. Foram tempos difíceis para uma família numerosa. “Não tínhamos o supérfluo, mas o essencial nunca nos faltou”, dizia meu pai com gratidão. Ele demonstrara desde cedo o gosto pelos livros e pelo estudo, o que não passou despercebido pelo padrinho de crisma, José Junqueira, que ofereceu lhe custear o curso primário no internato do Colégio Santa Maria, em Baependi, no sul de Minas Gerais. Aos onze anos de idade, foi encaminhado àquela pacata e tradicional cidadezinha mineira, onde concluiu, dois anos mais tarde, o primário, com louvor. Desde então meu pai se afeiçoou ao sul de Minas, onde mais tarde construiria uma casa espaçosa, no centro da cidade vizinha, Caxambu, para passar as temporadas de verão com a família.

A etapa seguinte seria no Ginásio Municipal de Barra Mansa, hoje Verbo Divino. No término do curso, foi considerado o melhor aluno e premiado com medalha de ouro. Visando a dar continuidade aos estudos e custeá-los, o jovem Hermínio, aos 17 anos, empregou-se em um armazém como balconista, em Barra Mansa. O segundo emprego foi em São Paulo, onde trabalhou por alguns meses na agência da Central do Brasil. Acostumado à vida tranquila do interior, muito estranhou a agitação da cidade grande, queixando- -se à mãe em carta de agosto de 1938: “Isto aqui cansa a gente que é uma coisa horrível”.

Retornando a Volta Redonda, prestou concurso para um banco, onde trabalhou até 1942, quando passou a integrar o quadro de funcionários da Companhia Siderúrgica Nacional, recém-inaugurada naquela cidade. Neste mesmo ano, aos vinte e dois anos, casou-se com minha mãe, Inez, que era descendente de italianos, professora primária, nascida em Aiuruoca, cidade não muito distante de Baependi onde ele estudara. No ano seguinte, nascia a primeira filha, Ana-Maria.

Quanto aos estudos, ainda cursou, em 1945, a Escola Técnica, de nível médio, onde obteve o título de técnico em contabilidade e, ao cursar matérias complementares do mesmo curso, alcançou o nível equivalente ao universitário.

Quis o destino, no início de 1950, quando eu já era nascida e minha irmã mais velha tinha sete anos, que meu pai, na época exercendo o cargo de chefe da Divisão de Contabilidade da CSN, fosse convidado pelo contador-geral, Mário Lorenzo Fernandez, a se transferir para o escritório da empresa em Nova York. Para aquela fascinante cidade do hemisfério norte mudou-se a família Miranda, onde permaneceu durante quatro anos e oito meses. A experiência, tanto no campo profissional, quanto pessoal, foi enriquecedora para todos nós. Houve, inclusive, em 1953, um encontro memorável com Érico Verissimo, quando meu pai foi recepcioná-lo em Washington, ocasião em que o aclamado escritor assumiu a função de adido cultural na OEA. De volta ao Brasil, em 1954, com mais um membro na família, o Gilberto, que nascera nos Estados Unidos, não tardamos a nos mudar para o Rio de Janeiro, capital, onde meu pai daria continuidade à carreira na CSN. Foi na Cidade Maravilhosa que ele se aposentou, em 1980, como vice-presidente de controle da Siderúrgica e presidente da Sotecna, empresa subsidiária da CSN.

O interesse pela literatura já se manifestara desde os tempos em que estudou em Barra Mansa, onde escreveu artigos para a publicação escolar “O Ginasiano”. O primeiro livro, de 1940, e que permaneceu inédito, chamou-se N. L. (da expressão em latim Non liquet), cujos originais enviou ao próprio Erico Verissimo que tanto admirava. A resposta do escritor gaúcho chegou por carta com o seguinte comentário: “Comecei a beliscar suas páginas, sem muita esperança, para acabar encantado com o seu estilo, que é natural, preciso e agradável [...]”

No mesmo ano, reconhecendo-se um “autor desconhecido e afastado das rodas literárias da época”, lançou no mercado Resposta a Josué, que lhe proporcionou a alegria de excelentes críticas, como de Eloy Pontes, crítico literário de O Globo, de Agripino Grieco e de Monteiro Lobato, que era seu maior ídolo. De Buenos Aires, onde se encontrava, e de certo modo desgostoso com o Brasil, Lobato escreveu: “num país de ideias erradas, as suas estão certas”. Transcrevo em seguida um pequeno trecho do romance, p. 36.

Daí é que Josué começou a se familiarizar com a freguesia, a desatrelar a língua envergonhada de matuto. Com mais um pouco estava escrevendo tudo, embora com as letras meio desajeitadas, graúdas e sem direção certa.

Em 1942, colaborou com as revistas Carioca e Vamos Ler, do Rio de Janeiro, e igualmente com O Jornal, na coluna “Página da Província”, espaço aberto por Vinicius de Moraes para acolher autores do interior do país. Nessa época foi publicado na revista Contos Magazine o conto premiado, “Ciúmes”. A seguir, pequeno trecho do conto:

Era o que ele sentia naquelas referências ao passado – ciúme. Muitas vezes, diante da mulher, olhando-a com os olhos parados, num silêncio rígido, ardia em ciúmes. Ela não podia sequer adivinhar, mas a tempestade rugia como se o mar dançasse furioso sob um lençol de gelo.

A partir de 1950, de Nova York, enviou para o jornal A Manhã algumas crônicas, e, de volta ao Brasil, seus escritos passaram a ser publicados por José Olinto, na coluna “Porta de Livraria” de O Globo. De Ricardo Marinho recebeu o prêmio pelo conto “Meu amigo desconhecido”, publicado em 1959. Apesar dos trabalhos literários bem acolhidos pela crítica mais competente, meu pai, durante a estada em Nova York, começou a se interessar pela literatura não ficcional. Conta que, numa pilha de livros de bolso numa livraria daquela cidade, encontrou o seguinte título: Você vive além da morte, de Harold Sherman. Sobre essa obra escreveu seu primeiro ensaio crítico a ser publicado no Reformador, em setembro de 1958. A partir de então passou a se dedicar mais e mais às obras de cunho espírita e, em 1967, lançou Os procuradores de Deus, primeiro livro voltado ao público espírita.

Admito que nem sempre falássemos a mesma linguagem quando o assunto era religião, mas jamais discutíamos. A afinidade que havia entre nós era quanto ao gosto pelas artes e pela literatura, pela música clássica e também popular, pela cultura e língua estrangeiras, o respeito pelo ser humano e o carinho pelas crianças. Era característico em meu pai tratar com a mesma consideração desde a mais simples pessoa até a mais importante. Um de seus poemas preferidos, o qual copiou para mim nas primeiras páginas de um diário que me presenteou quando completei quinze anos, era “Se”, de Rudyard Kipling, e ressalto aqui as palavras que bem ilustram esse traço nobre de sua personalidade: “Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes e, entre reis, não perder a naturalidade [...]”.

A vida, todos sabemos, não passa “em branca nuvem” (para lembrar Francisco Otaviano), e com meu pai não seria diferente. Compreendo hoje em dia que ele procurou lidar com as adversidades sem se deixar abater. Tinha o hábito de meditar, diariamente, no silêncio de seu quarto. Nomes de parentes e amigos que lhe pediam conselhos eram anotados no caderno de preces. Nas suas conversas com Deus, tranquilizava-se e ao mesmo tempo rogava por aqueles que passavam por momentos difíceis. Era assim que renovava as forças para continuar o seu caminho.

Até os últimos dias de vida, em companhia da querida esposa que tanto o incentivou na carreira profissional e literária, mostrou-se grato, reconhecendo-se um homem feliz e realizado. Os tempos modestos em companhia dos pais e irmãos no interior do Rio de Janeiro não o desanimaram. Pelo contrário, serviram para impulsioná-lo a vencer por meio do estudo e do trabalho. A convivência com o pai e o avô Hermínio será sempre motivo orgulho e alegria para mim e minha filha, Flavia. A ele e à minha mãe sou eternamente grata por tudo que nos proporcionaram. Onde quer que esteja, pai, na graça de Deus, quero crer que olha por mim e nos abençoa, como sempre. Um dia haveremos de retomar nosso passeio pelo jardim e sentir novamente o perfume das folhas do tomateiro.

(Retirado da Revista Leitura Espírita, edição especial, n. 18, ano 3)



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